Richard Hatchett, diretor executivo para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI), falou sobre cenário de doenças como gripe aviária e da Mpox
Há pouco mais de quatro anos, quando o mundo ainda vivia o início do que se transformou numa das piores crises sanitárias da História, um medo até então desconhecido virou realidade da maior parte da população: o de um vírus se disseminar e causar um surto em escala global. Mas essa preocupação não era novidade para a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (CEPI).
O grupo é uma parceria global que busca acelerar o desenvolvimento de vacinas e outras medidas de preparação para doenças infecciosas que possam causar justamente epidemias ou pandemias. A iniciativa foi fundada ainda em 2017, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, como resposta ao surto sem precedentes de ebola na África Ocidental, que terminou um ano antes.
No final deste mês, a CEPI realiza, em parceria com o Ministério da Saúde do Brasil, a 2º Cúpula Global de Preparação para Pandemias, que será no Rio de Janeiro nos dias 29 e 30. O evento reunirá nomes internacionais para debater como o mundo pode se preparar para futuras ameaças como a Covid-19, que demandam atenção especialmente no momento de avanço de doenças como dengue, Mpox e gripe aviária.
— Temos doenças disseminadas por insetos, por transmissão sexual, novas emergentes, nosso encontro com agentes infecciosos continuará e encontraremos alguns com potencial de se espalhar globalmente e de serem pandemias da mesma forma que a Covid-19 foi. Não é como um vulcão que, quando explode, descarrega toda aquela pressão e depois se acalma por um longo tempo. Nós tivemos uma pandemia, mas todos os mesmos fatores que impulsionaram a emergência daquele vírus ainda estão lá, e outra doença pode surgir a qualquer momento — diz o epidemiologista e diretor executivo da CEPI, Richard Hatchett.
Ao GLOBO, Hatchett, que já foi diretor da Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Avançado Biomédico dos Estados Unidos e estará no Brasil para a cúpula, falou sobre a importância de líderes políticos encararem esse tema como uma categoria de risco permanente, explicou como vê o cenário de doenças hoje e quais são os desafios para alcançar a meta de desenvolver vacinas em apenas 100 dias.
Por que se fala sobre a próxima pandemia como uma questão de “quando” e não de “se” ela vai acontecer?
A experiência da humanidade com doenças, que remonta a milhares de anos, é a emergência repetitiva e recorrente de novos patógenos, alguns dos quais têm o potencial de se espalhar muito rapidamente e globalmente. E isso aumentou junto com a mobilidade das pessoas pelo mundo e seus mecanismos para transferir doenças a partir das viagens, de navios e aviões, quando transportam vetores, das mudanças climáticas, mudando a forma como humanos interagem com outras espécies, do crescimento das populações e da expansão para áreas mais remotas, entre outros fatores.
Isso porque as bactérias e vírus evoluem para aumentar sua transmissão, sua reprodução e sua aptidão para viver e se espalhar no mundo. Acabamos de ver isso acontecer de maneira muito dramática com a Covid, quando vimos novas variantes surgindo e o vírus continuando a evoluir.
Temos visto isso persistentemente ao longo da história humana, mas estamos acompanhando muito mais de perto nos últimos 50 a 70 anos. Vimos o HIV se disseminar globalmente, vírus como o ebola, que surgiu pela primeira vez em meados dos anos 70 no Congo, na época Zaire, e no Sudão.
Entre 1976 e o surto na África Ocidental em 2013, a maioria dos surtos de ebola foram pequenos e contidos usando intervenções tradicionais de saúde pública, isolamento e quarentena. Mas então o vírus encontrou seu caminho para um novo ambiente, onde nunca havia sido visto antes, na África Ocidental. Esses países eram caracterizados por ter uma infraestrutura rodoviária bastante boa, o que permitiu ao vírus viajar muito rapidamente para as capitais, mas sistemas de saúde pública muito pobres. Então tivemos esse grande surto que durou quase dois anos e causou mais de 11 mil mortes.
E agora estamos vendo mudanças na distribuição das populações de mosquitos ou outros insetos que transmitem vírus, provavelmente como resultado das mudanças climáticas. Doenças como dengue, zika e chikungunya estão se espalhando ao redor do mundo, afetando Ásia, América Latina, África e causando surtos cada vez maiores. O surto de dengue no Brasil este ano é um exemplo do potencial dessas doenças de se espalharem muito rapidamente e de forma explosiva.
Então há muitos fatores diferentes que podem impulsionar a emergência e a disseminação de doenças. Quanto mais surtos você tem, mais oportunidades você está dando para vírus que têm potencial de se espalhar globalmente de encontrarem um nicho que facilite a transmissão na população humana.
Temos doenças disseminadas por insetos, por transmissão sexual, novas emergentes, nosso encontro com agentes infecciosos continuará e encontraremos alguns com potencial de se espalhar globalmente e de serem pandemias da mesma forma que a Covid-19 foi. Não é como um vulcão que, quando explode, descarrega toda aquela pressão e depois se acalma por um longo tempo. Nós tivemos uma pandemia, mas todos os mesmos fatores que impulsionaram a emergência daquele vírus ainda estão lá, e outra doença pode surgir a qualquer momento.
Nós tivemos também em 2022 a disseminação global da Mpox, antiga varíola dos macacos. Mais recentemente, o Congo tem relatado casos de uma variante mais letal. Qual a preocupação?
Mpox foi uma doença que foi amplamente vista na Nigéria e na África Central, particularmente na República Democrática do Congo (RDC), mas rara por um longo tempo porque a vacina que usamos para erradicar a varíola fornecia proteção contra ela. Mas com a erradicação da varíola, os programas de vacinação foram encerrados, então, a partir do final dos anos 70 você começou a ter novas pessoas nascendo sem receber a proteção.
Mas o que mudou e resultou no aumento global há alguns anos foi que o vírus encontrou seu caminho por redes de transmissão sexual. Era uma questão de tempo até que, como o HIV, essas redes começassem a se conectar em uma transmissão global. Felizmente, tínhamos vacinas existentes e conseguimos usá-las para reduzir a transmissão.
Mas temos dois clados do vírus, o que causou o surto é o menos virulento, da Nigéria. Já a forma da doença na RDC tem uma taxa de mortalidade que pode ser até 10 vezes maior. E o preocupante neste momento é que esse outro clado também encontrou seu caminho para a transmissão sexual. Então, estamos olhando para uma potencial bomba-relógio em que a forma mais perigosa da doença agora tem o potencial de explodir e se espalhar globalmente.
Temos epidemias, como essa da Mpox no Congo hoje, que não recebem tanta atenção, especialmente porque estão em países subdesenvolvidos. Como você vê esse risco?
Uma das coisas que tentamos comunicar aos líderes políticos é que estamos falando de uma categoria de risco que precisamos considerar em nível político e de financiamento. Não se trata apenas de Mpox, Covid ou ebola. Há uma tendência natural de focar naquela doença específica no momento e, quando ela diminui, voltar à vida normal. Mas a categoria de risco não diminui, isso é o que os líderes precisam entender.
Em 2020, a ameaça foi a Covid, em 2022, a Mpox, e, em 2024, no Brasil, a dengue. Mas a categoria não muda. Talvez uma analogia seja os riscos cibernéticos. Todos internalizamos isso, vivemos em um mundo digital. Às vezes há vírus de computador, phishing, malware, ransomware. Mas reconhecemos o cibernético como uma categoria que precisa ser abordada, e a sociedade construiu medidas para isso.
As pessoas ainda tendem a pensar nos riscos pandêmicos como a peste, algo que a humanidade deixou para trás por causa da sociedade moderna, saneamento e sistemas de saúde pública, mas é um problema para o século XXI. Na verdade, em relação à sociedade medieval, o risco aumentou devido a todos esses fatores que comentamos. Mas as pessoas não entendem isso.
Aprendemos algo com a Covid-19?
A experiência com a Covid realmente iluminou muitas das deficiências de nossa preparação atual e de nossos sistemas internacionais de resposta. Uma coisa que claramente precisamos melhorar é a vigilância de ameaças emergentes, a identificação e caracterização precoce de novas doenças. A Covid provavelmente surgiu no final de 2019 na China, em Wuhan, e essas informações não foram compartilhadas globalmente. As primeiras notificações oficiais foram no final de dezembro. Idealmente, se isso tivesse sido detectado um mês antes, e as intervenções tivessem ocorrido mais cedo, isso poderia ter retardado significativamente a propagação da doença, mitigado e potencialmente até mesmo permitido que fosse controlada.
Ter capacidades de sequenciamento genômico globalmente disponíveis é importante. Mas quando a África do Sul identificou pela primeira vez a Ômicron e compartilhou a informação, fez a coisa certa e foi punida, porque os países introduziram restrições de viagem. Essa não foi a mensagem certa a ser enviada e levou os países a reter informações ou não compartilhá-las o mais rápido possível.
Outra coisa que vimos durante a pandemia foi o uso de tecnologias de detecção. Alguns países responderam concentrando-se no desenvolvimento de diagnósticos para detecção precoce, como Cingapura, Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Eles se saíram muito melhor nisso do que muitos países como os EUA e o Reino Unido.
E há problemas estruturais. As ações tenderam a servir às necessidades dos países onde foram desenvolvidas primeiro. Isso é compreensível do ponto de vista dos líderes políticos, mas o fato de que o desenvolvimento de vacinas, por exemplo, foi concentrado nos EUA, Europa, Índia e China criou problemas enormes para o resto do mundo, que teve que esperar até que as vacinas pudessem ser transferidas para instalações de produção como Butantan e Fiocruz no Brasil.
Precisamos realmente garantir uma diversificação global das capacidades de fabricação de vacinas, e que elas tenham acesso a essas novas tecnologias de resposta rápida, como o RNA mensageiro, que podem ser usadas para desenvolver doses muito rapidamente.
Como você vê a resposta atual à gripe aviária? E qual é o seu nível de preocupação?
O H5N1 está circulando há anos. Em relação à estrutura do vírus, ele ataca receptores no sistema respiratório das aves que facilitam a transmissão entre elas, mas em humanos, esses receptores estão bem profundos nos pulmões, e não nas vias aéreas superiores, então há razões biológicas para que nossa experiência com o vírus não tenha sido de uma transmissão de humano para humano.
Mas, dito isso, acredito que seria um erro ser complacente com o risco. Especialmente porque o problema com o Influenza é que os vírus podem recombinar. Então você pode ter parte de um recombinando com parte de outro que produz um novo vírus, cujo potencial de transmissão ou letalidade é impossível de prever.
O risco associado a esses surtos de gripe aviária em espécies mamíferas, especialmente em bovinos, é o potencial para que esses animais interajam particularmente com outros como suínos, que são muito conhecidos como uma “tigela de mistura” porque podem ser infectados por diferentes vírus Influenza. Vemos muitas vezes essa recombinação acontecer em suínos e passar para humanos através dos trabalhadores das fazendas, essa foi origem da última pandemia de gripe suína em 2009.
Portanto, o fato de termos agora um vírus que parece estar se tornando bem estabelecido em espécies mamíferas, mesmo que não seja transmissível de humano para humano ainda, aumenta a perspectiva para esses eventos de recombinação e de chegar mais próximo dos humanos.
A CEPI, por exemplo, tem diferentes níveis de preparação e elevamos o monitoramento do H5N1, agora está um passo acima do nível básico. Porque há uma série de ações que chamamos de “baixo arrependimento” que podemos tomar para nos colocar em uma posição melhor para responder rapidamente se for necessário.
Uma das coisas que estamos fazendo é usar nossas parcerias em IA para ver se podemos projetar melhores antígenos que possam ser usados para criar vacinas. E esse é um trabalho relativamente barato. Não está falando sobre produção em grande escala, mas fazendo várias etapas que levam tempo agora, para que, se nos encontrarmos em uma emergência, possamos nos mover rapidamente.
A CEPI tem a missão de conseguir desenvolver vacinas em apenas 100 dias após um novo patógeno ser sequenciado. Quais são os principais desafios?
A chave para a criação de vacinas em 100 dias é fazer o máximo possível do processo de desenvolvimento com antecedência. As atividades que eu estava descrevendo para a gripe, por exemplo, são parte disso. Esse investimento em preparação quando você não está em uma crise é crítico.
A Covid é uma boa prova de conceito. Havia vários pesquisadores já trabalhando com outros coronavírus. Nós estávamos financiando o trabalho em vacinas para MERS (Síndrome respiratória do Oriente Médio) com vários parceiros, incluindo Oxford, que acabou desenvolvendo a vacina contra a Covid com a AstraZeneca. O Instituto Nacional de Saúde dos EUA estava trabalhando com a Moderna para desenvolver vacinas contra o MERS.
Então, quando a COVID surgiu, esses grupos foram capazes de mudar rapidamente para adaptar as vacinas. A Moderna, dentro de 36 horas após receber a sequência do novo vírus conseguiu adaptar sua dose para MERS e avançou para os ensaios clínicos em dois meses. Você tem que pensar no problema de ponta a ponta e fazer investimentos direcionados ao longo de todo o processo.
Estamos em uma situação melhor hoje do que estávamos em 2020?
Eu acredito que sim, por várias razões. Uma delas é que a tecnologia para vigilância e desenvolvimento de medidas evoluiu profundamente durante a pandemia. Provavelmente avançamos uma década de desenvolvimento em alguns anos porque todos estavam focados nisso. A conscientização global sobre o problema também se expandiu. Não tem sido perfeito, há muita controvérsia sobre se o acordo pandêmico terá sucesso ou não. Seria realmente importante para o mundo, mas há muito que podemos fazer enquanto essas negociações continuam.
Qual a importância de realizar a cúpula no Brasil?
O fato de que essa reunião vai acontecer no momento em que o Brasil está lidando com um grande surto de dengue sublinha a importância de continuarmos fazendo progressos e por que esse tema é tão importante. E está acontecendo durante a presidência do Brasil no G20, quando o país tem uma influência externa muito grande, e a preparação para pandemias é parte da agenda do Brasil. Uma das coisas que o país realmente enfatizou é a importância de expandir o acesso aos fabricantes. Então é importante ter a reunião no Sul Global, dada as desigualdades de acesso e a importância de redesenhar os sistemas que temos para produzir um acesso mais equitativo durante ameaças futuras. Quando levantamos a ideia de realizar a cúpula no Brasil para Nísia Trindade, ministra da Saúde, que é ex-membro do conselho do CEPI, ela foi muito receptiva e apoiadora.