Publicidade de medicamentos e limites da atuação reguladora da Anvisa

STJ estabeleceu novo parâmetro de segurança jurídica para empresas do setor

A publicidade de medicamentos no Brasil é um tema sensível que envolve a proteção à saúde pública e o equilíbrio entre o direito à informação e a necessidade de regulação pelo Estado. A decisão no Recurso 2.035.645, julgada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), lança luz sobre os limites da atuação reguladora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em matéria de propaganda de medicamentos.

Este artigo examina os argumentos apresentados pelas partes no processo, a posição adotada pelo STJ ao decidir sobre a legalidade da Resolução da Diretoria Colegiada96/2008 da Anvisa e os impactos da decisão sobre a atuação da agência e sobre as indústrias por ela reguladas.

Contexto fático e jurídico

A RDC 96/2008 foi editada pela Anvisa com o objetivo de regulamentar a publicidade de medicamentos no Brasil. Entre outras disposições, a resolução impõe restrições ao conteúdo de propagandas, como a vedação ao uso de imagens de pessoas utilizando medicamentos e a exigência de inserção de cláusulas específicas de advertência.

No entanto, a Aspen Pharma Indústria Farmacêutica Ltda. questionou judicialmente a validade dessa resolução, argumentando que a Anvisa teria extrapolado sua competência regulatória ao impor obrigações não previstas na legislação federal.

O processo foi originalmente julgado pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), que decidiu pela suspensão dos efeitos da RDC 96/2008 em relação à Aspen Pharma, entendendo que a Anvisa teria ultrapassado os limites do poder regulamentar ao criar novas restrições para a publicidade de medicamentos, sem respaldo legal.

No âmbito do STJ, a controvérsia se deu quanto ao legítimo exercício de sua função regulatória e se, nos termos da Lei 9.782/1999, a agência teria competência para complementar a legislação existente afim de proteger a saúde pública. Por outro lado, a Aspen Pharma argumentava que a criação de novas obrigações para a publicidade de medicamentos, sem previsão em lei, configuraria abuso de poder regulamentar.

A empresa baseou seu argumento nos artigos 220, §§ 3º, II, e 4º, da Constituição Federal, que estabelecem que a propaganda comercial de medicamentos está sujeita a restrições impostas por lei federal, e não por atos normativos infralegais.

A decisão do STJ

O STJ, ao analisar o recurso especial interposto pela Anvisa, decidiu que a agência extrapolou os limites de seu poder normativo ao editar a RDC 96/2008. O tribunal reconheceu que, embora a Anvisa tenha o poder de fiscalizar e controlar a publicidade de medicamentos, esse poder não lhe confere a competência para criar novas restrições ou obrigações que não estejam expressamente previstas em lei.

A decisão reafirmou que o poder regulamentar das agências reguladoras deve ser exercido em conformidade com a legislação existente, sem criar direitos ou obrigações que extrapolem o que foi definido pelo legislador. O STJ também destacou que a Lei 9.294/1996 já estabelece as diretrizes para a publicidade de medicamentos e que as disposições da RDC 96/2008, ao impor novas restrições, violaram o princípio da legalidade.

Outro ponto importante levantado pelo tribunal foi a necessidade de diálogo institucional. O STJ determinou que a decisão fosse comunicada ao Congresso Nacional e ao Ministério da Saúde, para que o arcabouço normativo sobre a propaganda de medicamentos possa ser aprimorado, se necessário.

Consequências da decisão para as indústrias farmacêuticas e outras da saúde

A decisão do STJ no Recurso Especial 2.035.645 tem impactos diretos e significativos no cotidiano das indústrias farmacêuticas e de outras áreas da saúde. Ao limitar a atuação regulatória da Anvisa em matéria de publicidade de medicamentos, o tribunal estabeleceu um novo parâmetro de segurança jurídica para as empresas do setor, que agora poderão ter maior previsibilidade sobre o que está permitido em suas estratégias publicitárias.

Condutas vedadas pela RDC 96/2008 e que passarão a ser permitidas

A decisão do STJ no Recurso Especial 2.035.645 indica uma série de vedações e regras previstas na RDC 96/2008, mas que não entram respaldo na legislação:

  1. Vedação à propagada indireta em contextos cênicos, espetáculos, filmes, programas radiofônicos ou outros tipos de mídia eletrônica ou impressa (art. 4º, parágrafo único);
  2. Proibição de atos publicitários com imagens de pessoas fazendo uso de medicamentos, especialmente quando sugerir ser o fármaco detentor de características organolépticas agradáveis, inclusive quanto ao sabor (art. 8º, III e VI);
  3. Exigência de cláusulas específicas de advertência, a exemplo da necessidade de indicação das substâncias contidas no medicamento, especialmente quanto àqueles que apresentem efeitos de sedação/sonolência (arts. 17 e 23);
  4. Obrigações de conteúdo da propaganda, relacionadas a informações de ordem técnica ou modo de divulgação (arts. 22 e 24); e
  5. Interdição, na publicidade de medicamentos isentos de prescrição médica, de determinadas expressões (v.g. comprovado cientificamente ou demonstrado em ensaios clínicos) e imagem e voz de pessoas célebres (art. 26).

Nos termos da decisão, todos esses exemplos estão em desacordo com os limites fixados na Lei 9.294/1996 e, portanto, não podem, a pretexto de regulamentá-la ou de constituir o direito de fiscalização, transbordar a matéria legal pela criação de regras que a lei não previu. Todas essas práticas, antes entendidas como vedadas, agora estão permitidas, salvo que haja alguma alteração promovida em lei e que volte a proibi-las.

Maior previsibilidade e segurança jurídica

Para as indústrias farmacêuticas, a decisão reduz o risco de serem surpreendidas por novas regulamentações infralegais que possam impactar diretamente suas operações de marketing.

A RDC 96/2008 impunha diversas restrições adicionais àquelas previstas na Lei 9.294/1996, o que gerava incerteza para as empresas ao definir suas campanhas publicitárias. Com a decisão do STJ, as regras aplicáveis ficam claramente delimitadas pela legislação federal, garantindo maior estabilidade normativa para o planejamento de ações comerciais.

Essa previsibilidade também se reflete nas áreas de compliance e governança corporativa, que poderão adotar estratégias mais alinhadas às normas legais, sem o receio de que a Agência possa impor novas obrigações de maneira unilateral, o que favorece o ambiente de negócios.

Impactos na estratégia publicitária e competitividade

A flexibilização das regras de publicidade pode levar as indústrias farmacêuticas a explorar novas abordagens em suas campanhas, buscando uma maior proximidade com o consumidor. Com a eliminação de algumas restrições impostas pela Anvisa, as empresas têm mais liberdade para desenvolver estratégias de marketing criativas e inovadoras, respeitando os limites estabelecidos pela legislação.

No entanto, essa maior liberdade publicitária exige responsabilidade. A indústria farmacêutica deve continuar a atuar de maneira ética e transparente, garantindo que as informações divulgadas sejam cientificamente comprovadas e não induzam o consumidor a erros. A decisão do STJ, ao manter o controle e fiscalização da Anvisa dentro dos limites da lei, reforça a importância de se encontrar um equilíbrio entre liberdade publicitária e proteção ao consumidor.

Desafios para a regulação futura

Por fim, a decisão do STJ coloca um desafio para o futuro da regulação da publicidade de medicamentos no Brasil. Embora a Anvisa tenha sido limitada em sua atuação, a necessidade de uma regulamentação eficaz sobre o tema permanece. O Congresso Nacional e o Ministério da Saúde foram convocados a aprimorar o arcabouço normativo existente, o que pode levar a novas discussões legislativas e regulamentares.

As indústrias farmacêuticas e de saúde deverão acompanhar de perto esses movimentos regulatórios e participar ativamente das discussões sobre novas normas que possam ser propostas. A participação no processo legislativo e em consultas públicas será essencial para garantir que as novas regulamentações sejam equilibradas e compatíveis com a realidade do setor.

Reforço da autorregulamentação publicitária através do Conar

A decisão do STJ no Recurso Especial 2.035.645 também reforça a importância da autorregulamentação publicitária para as empresas associadas ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar). O papel do Conar, na criação de padrões éticos para a publicidade, se torna ainda mais relevante em um cenário onde as restrições impostas pela Anvisa foram limitadas àquelas previstas em lei.

Complemento à regulação governamental

Embora o STJ tenha delimitado o poder da Anvisa na imposição de restrições publicitárias, a decisão também evidencia a necessidade de um ambiente de mercado em que as próprias empresas se comprometam com boas práticas. A autorregulamentação promovida pelo Conar é uma peça-chave nesse cenário, oferecendo diretrizes que vão além da conformidade estrita com a lei e promovendo uma publicidade responsável e ética, especialmente em setores sensíveis como o farmacêutico.

O Conar tem um papel consolidado em garantir que as peças publicitárias sigam princípios éticos, que respeitem a verdade e não induzam o consumidor ao erro. As empresas associadas ao Conar voluntariamente se submetem a suas normas, o que cria um mecanismo de controle adicional, que complementa a regulação governamental. Isso é particularmente importante em um ambiente onde a regulação estatal é limitada pela própria legislação.

Responsabilidade e proteção ao consumidor

A decisão do STJ deixou claro que a Anvisa não pode impor novas obrigações para a publicidade de medicamentos além do que está previsto na Lei 9.294/1996. No entanto, o mercado farmacêutico, ao operar com produtos que afetam diretamente a saúde das pessoas, deve manter um alto padrão de responsabilidade nas suas campanhas publicitárias.

A autorregulamentação através do Conar oferece uma estrutura para garantir que as mensagens transmitidas ao público sejam claras, precisas e baseadas em evidências científicas, mesmo na ausência de regulações mais rigorosas da Anvisa.

Além disso, o fato de as empresas estarem sujeitas ao escrutínio de seus pares dentro do Conar cria um incentivo para a manutenção de padrões elevados de ética e transparência. O sistema de autorregulamentação não apenas protege o consumidor, mas também fortalece a confiança do público nas empresas que adotam práticas publicitárias responsáveis.

Vantagem competitiva e reputação

Para as empresas associadas ao Conar, o compromisso com a autorregulamentação pode ser visto como uma vantagem competitiva. Em um mercado onde as ações de marketing são mais livres após a decisão do STJ, ser associado ao Conar pode servir como um selo de qualidade e confiabilidade. As empresas que seguem as normas do Conar podem se diferenciar por demonstrar um compromisso adicional com a ética e a proteção ao consumidor, o que pode melhorar sua reputação e aumentar a lealdade dos clientes.

Além disso, a adesão às normas do Conar pode ajudar as empresas a evitar litígios e sanções administrativas, uma vez que as campanhas que seguem as diretrizes éticas estabelecidas têm menos chances de serem questionadas por concorrentes ou consumidores. Isso cria um ambiente mais seguro para a inovação publicitária, sem o risco de cruzar limites que possam resultar em penalidades.

A Anvisa mantém competência sobre a publicidade de medicamentos mesmo após a decisão do STJ?

Mesmo com a decisão do STJ no Recurso Especial 2.035.645, a Anvisa continua a ter competência sobre a publicidade de medicamentos, mas dentro de limites mais restritos e claramente delineados pela legislação. A decisão não eliminou o papel da agência na regulação desse tema, mas reforçou que sua atuação deve estar em conformidade com o que é expressamente previsto em lei.

Fiscalização e controle de conformidade

A decisão do STJ reafirma que a Anvisa mantém seu papel essencial de fiscalizar, acompanhar e controlar a publicidade de medicamentos, conforme estabelecido na Lei 9.782/1999. O tribunal reconheceu que a agência tem autoridade para garantir que as propagandas respeitem as normas de vigilância sanitária e que não induzam os consumidores a erro ou representem risco à saúde pública. No entanto, essa competência deve ser exercida com base nas disposições legais existentes, especialmente a Lei 9.294/1996, que já define as restrições aplicáveis à propaganda de medicamentos.

Limitação do poder normativo

O que a decisão do STJ limitou foi a capacidade da Anvisa de criar novas restrições ou obrigações através de resoluções infralegais, como a RDC 96/2008, que impunha regras mais rígidas do que aquelas previstas em lei. O STJ entendeu que a agência não pode inovar ao criar direitos ou deveres que não estejam claramente delineados na legislação federal. Portanto, a Anvisa não tem competência para legislar sobre publicidade, mas sim para aplicar e fiscalizar o cumprimento das normas já estabelecidas.

Poder regulatório dentro dos limites legais

Em suma, a Anvisa ainda exerce um papel regulatório importante no controle da publicidade de medicamentos, mas esse papel deve ser exercido dentro dos limites estabelecidos pelas leis federais. A agência pode, e deve, continuar a garantir que as campanhas publicitárias estejam em conformidade com as normas sanitárias vigentes, atuando principalmente na fiscalização de conteúdos publicitários e na aplicação de sanções em caso de descumprimento dessas normas.

Esse controle da Anvisa é fundamental para assegurar que as propagandas de medicamentos sejam claras, precisas e cientificamente fundamentadas, protegendo assim a saúde dos consumidores e garantindo a integridade do mercado de medicamentos no Brasil.

Conclusão

A decisão do STJ no Recurso Especial 2.035.645, ao limitar a atuação regulatória da Anvisa em relação à publicidade de medicamentos, destaca a importância de mecanismos de autorregulamentação, como o Conar.

Em um ambiente onde a regulação estatal tem suas fronteiras claramente delineadas, a autorregulamentação serve como um complemento essencial para garantir que as práticas publicitárias das empresas sejam éticas e responsáveis. As empresas associadas ao Conar estão, assim, melhor posicionadas para manter a confiança do público, ao mesmo tempo em que se beneficiam de um ambiente de negócios mais previsível e seguro.

Fonte: https://www.jota.info/artigos/publicidade-de-medicamentos-e-limites-da-atuacao-reguladora-da-anvisa-28082024

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