Fabricantes de remédios investem na reputação

A indústria farmacêutica encontrou na pandemia uma oportunidade de impulsionar a reputação manchada nos anos anteriores – resta saber se o efeito será duradouro

Em meio à atual recessão americana, as ações de empresas farmacêuticas têm sido uma espécie de refúgio para investidores. Os resultados financeiros mais recentes, divulgados em julho pelas maiores companhias do setor, como Pfizer e Merck, superaram as expectativas do mercado. Apenas no último trimestre, as vendas da Pfizer com a vacina contra a covid-19 e o antiviral Paxlovid chegaram a US$ 17 bilhões. As receitas totais entre abril e junho deste ano somaram US$ 27,7 bilhões – 47% a mais em relação ao registrado no mesmo período do ano passado. As ações da Merck cresceram acima de 10% neste ano. Enquanto isso, o índice que reúne as 500 maiores companhias da Standard & Poors registrou uma queda na mesma proporção.

O dinamismo em torno das vacinas e dos medicamentos para lidar com a covid-19, além dos novos caminhos à frente, com novas tecnologias como o RNA mensageiro, trouxeram otimismo a investidores. E também melhoraram o humor de consumidores em relação à indústria. Por muitas décadas as farmacêuticas penaram a má reputação de trazer poucas inovações e cobrar demais por produtos cada vez menos acessíveis. A percepção está ancorada em fatos. Para cada US$ 1 bilhão gastos com pesquisa e desenvolvimento, o número de novos medicamentos lançados pelas maiores empresas do setor caiu à metade a cada nove anos desde 1950. O retorno estimado desses produtos caiu desde 2010, de 10% para 3,7%. A OCDE chegou a divulgar um relatório no qual reconhecia a necessidade de haver um novo balanço de negociação entre preços com a indústria farmacêutica, em 2017.

Até que a pandemia lembrou o mundo do potencial da indústria em trazer inovação e disseminá-la em larga escala – e assim abriu uma oportunidade de virar o jogo. Em abril deste ano, o presidente da Eli Lilly, David Ricks, resumiu o tamanho da oportunidade trazida pela pandemia numa conferência com investidores: “É a chance de uma geração para recuperar a reputação da indústria”. Segundo a empresa de pesquisa The Harris Poll, 47% dos entrevistados têm opiniões positivas acerca do setor – 15 pontos acima do registrado antes da pandemia. O setor estava sempre nas últimas posições da lista, bem atrás de outras indústrias, como a de tecnologia, que tem registrado um índice próximo de 70%. A conquista é notável – mas o próprio setor vê com cautela a consistência do avanço. “A reputação vem em gotas. Mas você pode perdê-la em baldes”, afirmou o presidente da Pfizer, Albert Bourla.

O ganho na reputação de toda a indústria na pandemia é ainda mais notável quando se analisa que não faltaram golpes duros em aspectos sensíveis à imagem do setor. Um dos mais emblemáticos foi a condenação da família Sackler, nos Estados Unidos, dona da farmacêutica Purdue, em 2021. O estopim gira em torno do analgésico opioide Oxycontin. Com um marketing agressivo, milhares de consumidores começaram a denunciar o medicamento por desencadear uma crise de vício e mortes por overdose no país. A sentença final, em abril de 2021, determinou o pagamento de US$ 4,5 bilhões em troca de imunidade à família controladora em eventuais ações judiciais. No mesmo ano, um documentário com detalhes da história foi lançado pela HBO, sob o título The Crime of the Century. Recentemente também aconteceram no país processos judiciais de governos estaduais contra empresas acusadas de inflacionar e manipular artificialmente os preços de medicamentos e reduzir a concorrência. Desde 2000, o setor já pagou mais de US$ 3 bilhões em sentenças, acordos e multas – numa conta que desconsidera o caso da Purdue.

O combate à covid-19 mudou não apenas a percepção das pessoas com as marcas corporativas – mas também a própria consciência dos consumidores sobre elas. Tradicionalmente, a indústria nunca fez esforço para vincular produtos com a marca corporativa – diferentemente do que se vê em outros setores, como o de bens de consumo. Nos últimos anos, gigantes como Unilever e Procter & Gamble gastaram bilhões para que as pessoas soubessem que um xampu ou sabão em pó de uma marca específica faziam parte de seus portfólios. No caso da indústria de saúde, durante a pandemia as pessoas começaram a discutir as qualidades ou os problemas de cada vacina com a mesma naturalidade com que se fala sobre os atributos de um celular. Começaram a desenvolver inclusive preferências, embora ninguém pudesse efetivamente escolher qual vacina poderia tomar. Beto Almeida, CEO no Brasil da consultoria de marcas Interbrand, faz analogia com os microprocessadores de computador, que passaram a ser notados quando a Intel inventou o slogan “Intel inside”. “Ninguém compra diretamente um microprocessador, mas a marca-ingrediente do notebook se tornou um assunto desde que a Intel levantou a consciência sobre a existência dela”, afirma.

Algumas empresas usaram deliberadamente essa estratégia inédita a seu favor. A Pfizer pagou a National Geographic para acompanhar o desenvolvimento da vacina em seus laboratórios, o que resultou em um conteúdo divulgado online. A Johnson & Johnson lançou uma série de vídeos nas redes sociais sobre suas pesquisas por uma vacina, com mais de 90 milhões de views em cem países. No caso das vacinas, o fenômeno foi sobretudo espontâneo e saiu do controle das fabricantes, e teve início na fase de ensaios clínicos dos imunizantes contra o novo coronavírus, a partir de meados de 2020. “Os resultados foram amplamente comunicados, saíam na mídia as porcentagens de eficácia e segurança apresentadas pelas fabricantes”, comenta Bruno Porto, sócio e líder da área de saúde da consultoria da PwC Brasil. Havia uma expectativa muito grande e, em cima do que era divulgado, veio muita conversa e uma boa dose de desinformação, amplificadas especialmente pelas redes sociais, que ajudaram a moldar as preferências expressadas por uma ou outra marca. “Havia uma parcela de influência de questões de política interna dos países e de geopolítica. Isso aconteceu no mundo todo. Tanto que os Estados Unidos não têm a vacina produzida na China e vice-versa”, exemplifica Porto. Segundo ele, quando a vacinação de fato começou, entraram as variáveis ligadas a valores pessoais. Para um indivíduo, por exemplo, tomar uma dose única era muito importante, para outro, a vacina ser aceita nas fronteiras dos Estados Unidos ou da Europa era decisória. Tinha ainda os que achavam fundamental a ausência de reações pós-aplicação. Hoje em dia, em que boa parte dos adultos brasileiros já tomou quatro doses e a mistura de imunizantes se tornou comum – por alguns estudos, até estimulada –, Porto enxerga que a discussão se diluiu pela indústria, sem favorecer necessariamente uma empresa ou outra. “Muita gente não se importa mais. Já passamos pelo momento mais crítico, já não há mais tanta preferência”, afirma.

Para especialistas, a pandemia aliviou a percepção de que o setor visava mais o lucro do que a saúde das pessoas, um dos aspectos que mais pesavam negativamente em sua imagem. A vacina contra a covid-19 trouxe um componente mais positivo do que a doença – a prevenção – aos holofotes. “A tomada de decisão foi rápida e todo o processo regulatório foi cumprido, todos estavam focados nisso. A indústria percebeu que o timing é muito relevante para o negócio e está implementando esse aprendizado na forma de fazer saúde”, diz Porto.

A percepção sobre a China

Entre os países, a China foi quem esteve mais em evidência durante a pandemia, não apenas pelo fato de que a doença tenha começado lá. Mas pela reação de seus pesquisadores e de sua indústria, fabricante das vacinas Sinovac e Sinopharm. “As chinesas foram as primeiras a chegar à África e ao Oriente Médio. Foi também a tecnologia que imunizou todos os profissionais de saúde do Brasil e que foi aprovada para aplicação em crianças pequenas. É a que tinha, então, a tecnologia mais conhecida e ficou marcada por dar menos reações”, lista Porto. Também foi amplamente divulgado à população que a potência asiática é grande produtora de matéria-prima de vacinas e medicamentos. “Se a experiência com produtos desenvolvidos e fabricados em determinado lugar for positiva, dá para transferir esses equities para a imagem do país”, diz Almeida. Japão e Coreia do Sul, por exemplo, passaram, cada um a seu tempo, pelo mesmo ciclo de percepção global de “fabricante de cópias de má qualidade” a “criador de tecnologia de ponta” que a China passa agora.

Vai durar?

A inovação – com impacto positivo na vida das pessoas – deverá ser um fator importante para que o setor continue ganhando pontos perante os consumidores. Conflitos no caminho, porém, podem atrapalhar. Um deles vem de um dos maiores mercados do mundo. Congressistas americanos aprovaram em agosto uma regra pela qual a indústria precisará negociar preços no caso de alguns medicamentos mais caros. A perspectiva já soou o alarme no setor, como uma medida capaz de reduzir o fôlego para inovar. Segundo o jornal The Financial Times, um documento do governo diz que o objetivo é produzir economias de US$ 100 bilhões ao longo de uma década. Um golpe duro que o setor terá de absorver. Para usar a analogia de Bourla, presidente mundial da Pfizer, resta saber se no longo prazo isso ajudará a trazer gotas de boa reputação ou o contrário.

Fonte: https://epocanegocios.globo.com/Marketing/noticia/2022/09/fabricantes-de-remedios-investem-na-reputacao.html

Compartilhe: